Recentemente a Jacobin publicou um artigo de Ben Burgis trazendo uma defesa hesitante da teoria da exploração de Marx.
Digo que foi uma defesa hesitante porque, como um prelúdio ao artigo, incluiu o que na prática era um repúdio à teoria que Marx utilizou para demonstrar a exploração: a teoria do valor-trabalho. Diz o artigo:
“como em todas as outras áreas de investigação empírica, a economia mudou muito desde que O Capital foi publicado em 1867. Hoje em dia, a maioria dos economistas, inclusive muitos marxistas comprometidos, rejeitam a teoria do valor do trabalho (LTV – Labor Theory of Value). Mas a aparente obsolescência da LTV significaria que o capitalismo é inocente sob a acusação de exploração? Nem tanto.”
Isso é generoso demais com a Economia. A Economia contemporânea realmente se trata de uma área de investigação empírica? Ao meu ver, não: é melhor enxergá-la principalmente como um campo de combate ideológico. É um campo no qual diferentes interesses políticos e de classe lutam para defender seus interesses econômicos. Como tal, deve-se perguntar por que a maioria dos economistas rejeita a teoria do valor-trabalho? Será que evidências empíricas vieram à luz desde 1867 que invalidaram Marx, ou foi tudo por uma questão política?
Eu diria que foi a evidente ameaça política do movimento socialista o que motivou a rejeição da teoria do valor-trabalho. Se a teoria do valor-trabalho for aceita, então a crítica de Marx à exploração capitalista torna-se inescapável. Teria sido politicamente intolerável que as universidades dos países capitalistas continuassem a ensinar a teoria do valor-trabalho depois que as classes trabalhadoras conquistaram o direito ao voto. Em vez disso, uma nova doutrina, a “Economia”, teve de ser desenvolvida e introduzida no currículo de ensino no lugar da “Economia Política”.
A nova economia “marginalista”, iniciada por Jevons e Marshall no mundo de língua inglesa, parecia muito científica. Jevons invocava explicitamente a mecânica estática como sendo seu modelo, fazendo uso extensivo de cálculo diferencial em sua matemática. [1] Mas se tratava da forma de ciência, sem a substância.
Nas ciências que de fato são empíricas, como a Física, a substituição de uma teoria por outra depende ou da nova teoria ser capaz de fazer previsões empíricas mais precisas do que as da teoria anterior, ou dela ter capacidade de prever fenômenos até então jamais observados. A substituição da teoria gravitacional de Newton pela Relatividade Geral (1915) foi baseada em novas previsões que foram confirmadas.
A teoria de Einstein previu o fenômeno das “lentes gravitacionais”: que corpos massivos desviariam o caminho dos fótons. Isso foi confirmado em 1919, quando, durante um eclipse solar, a posição aparente das estrelas perto do sol foi alterada, de acordo com como Einstein havia previsto. A ciência chama uma observação desse tipo de experimento crucial, que testa o cerne de uma teoria.
Jevons publicou sua teoria dos preços em 1871. Mas não houve nenhum experimento crucial empreendido para validá-la. Não houve nada comparável com a observação do eclipse solar de 1919. Nenhuma observação experimental sistemática comparou as previsões de Jevons com as de Ricardo e Marx. Em vez disso, a nova teoria ganhou aceitação devido a sua capacidade de imitar a forma da ciência.
A teoria neoclássica dos preços, como a teoria gravitacional, assume uma forma matemática. Muitas e muitas teorias científicas são expressas por meio de fórmulas matemáticas. Só que expressar algo em termos matemáticos, como um conjunto de equações, não é o suficiente para fazer com que esse algo se torne científico. Para ser científico, esse algo deve ser testável.
Se uma teoria contém fórmulas, então os parâmetros das fórmulas precisam ser ou constantes matemáticas pré-estabelecidas, como pi, ou devem ser deriváveis da observação: por exemplo, c, representando a velocidade da luz. Teorias desse tipo se prestam à verificação experimental.
Uma teoria que apresenta o que é conhecido como “variáveis livres”, ou seja, parâmetros que não podem ser vinculados à observação, nem mesmo à observação indireta, é uma teoria que não pode ser testada. A teoria marginalista dos preços é intestável justamente por essa razão. Considere o diagrama clássico de oferta e demanda como ensinado nas aulas de economia:
Nele nós temos a quantidade vendida (q) e o preço (p) no qual ela será vendida, sendo previstos como a intersecção de duas funções S(q), D(q) – respectivamente, as curvas de oferta (em inglês, “supply”) e de demanda.
Parece tudo muito científico, [2] exceto que os livros didáticos não oferecem nenhuma fórmula explícita para as funções S(q) ou D(q). Eles nem mesmo nos dizem qual seria a forma funcional que S e D devem assumir. Seriam funções parabólicas? Hiperbólicas? Exponenciais?
Se um físico dissesse que a órbita das estrelas em torno de uma galáxia é determinada pelas trajetórias ao longo das quais duas funções fossem equivalentes, mas não tivesse o cuidado de fornecer qualquer fórmula para essas funções, esse físico não seria levado a sério. Mas como a teoria neoclássica dos preços não é uma ciência empírica, mas sim um ramo da filosofia moral burguesa, os problemas com a forma matemática ou a sua testabilidade experimental são ignorados.
Os professores estão ensinando isso para adolescentes desavisados, que ficam impressionados por essas curva que se cruzam, visualmente concretas. Os professores não se incomodam em fornecer fórmulas explícitas para as curvas que traçam. Mas suponha que a gente acredita nas palavras deles, e que podemos olhar o texto padrão de introdução à economia utilizado nos EUA e tentar descobrir qual fórmula o autor estava usando para traçar suas curvas.
Eu peguei essas curvas, digitalizei os seus pontos e determinei que não é possível conseguir nenhuma forma adequada a elas com nada menos que um polinômio de terceiro grau. Isso significa que a função S(q) tem que ter a forma
Observe que ela possui 4 parâmetros, a, b, c, d, que precisariam ser vinculados à observação para se construir uma teoria testável.
Da mesma manera, D(q) também precisaria de no mínimo outros 4 parâmetros livres para que fosse possível traçar a curva exibida nos livros didáticos. A teoria dos preços deveria explicar dois números p, q, mas a fim de fazer isso ela invoca 8 variáveis livres desconhecidas. O livro didático não conta ao estudante como derivar essas variáveis. Suponha que vamos tomar alguns dos setores de produção na Classificação Industrial Padrão (Standard Industrial Classification):
2040 – produtos de grãos moídos
2050 – produtos de padaria
2052 – biscoitos e bolachas
2060 – produtos açucarados e de confeitaria
2070 – gorduras e óleos
Então, suponha que nós nos perguntemos como derivar as funções S e D para esses setores – não há resposta para isso nos livros didáticos. Por que não?
Porque a teoria foi definida de modo a tornar sistematicamente impossível a sua parametrização empírica. Em qualquer período no tempo, você pode apenas observar dois números para cada setor – as toneladas vendidas dos produtos de grãos moídos e o preço total pelo qual foram vendidos. Não tem como calcular o caminho de volta até as variáveis livres, pois – e essa é a principal pegadinha – qualquer mudança no preço ou na quantidade é explicada por Samuelson como sendo o resultado de uma mudança na função S, ou D, ou em ambas. Portanto, por princípio é impossível usar observações para fixar as variáveis livres, porque qualquer variação no preço ou na quantidade é atribuída a alterações nas funções de oferta e demanda. Ficamos com uma teoria que mesmo em princípio não é testável.
Ao contrário dela, a teoria do valor trabalho (“labor theory of value“, ou LTV) especifica relações entre observáveis empíricos:
λi é o número de anos por pessoa de esforço utilizado – diretamente ou indiretamente – para se produzir a produção total do i-ésimo setor da classificação industrial.
Vi o valor monetário (em dinheiro) da produção total do i-ésimo setor da classificação industrial.
A teoria afirma que esses dois observáveis estão relacionados de maneira linear, de forma que
, onde há apenas uma variável livre M, que os economistas marxistas chamam de Equivalente Monetário do Tempo de Trabalho (“Monetary Equivalent of Labour Time” ou MELT).
Esse parâmetro pode ser fixado observando o valor monetário total da produção em uma economia versus o total de mão de obra utilizada.
Cada parâmetro está ligado a aspectos observáveis, como deveria ser o caso em uma teoria científica. Devido a isso, ela é empiricamente verificável, e de fato tem sido verificada empiricamente, há vários estudos de economistas marxistas que a verificam. Para pegar apenas um artigo, Cottrell e eu descobrimos que para 49 indústrias na Classificação Industrial Padrão nos EUA, a correlação entre λ e V era de 98,3%. De fato, trata-se de uma correlação muito forte, que implica que o conteúdo do trabalho na produção industrial explica mais de 98% da variação dos valores monetários nesses setores.
A ciência requer resultados replicáveis – e a LTV produz resultados desse tipo. Correlações muito semelhantes foram obtidas para a Alemanha, para a Suécia e para 12 outras economias capitalistas.
O trabalho de Jevons, Marshall, Samuelson etc. sobre a teoria do valor não resiste nem mesmo ao escrutínio científico mais elementar. Pelos padrões de rigor ensinados para as ciências exatas, seus aspectos matemáticos e suas curvas seriam uma piada, caindo em algum lugar abaixo do padrão da astrologia. Contudo, como essa bobagem é ensinada com toda a seriedade aos jovens estudantes nas universidades estadunidenses, ela possui um efeito duradouro mesmo sobre aqueles que desejam se rebelar contra a ordem existente. O fato de um socialista como Burgis ainda levar isso a sério é um testemunho do quanto Jevons e seus seguidores eram expoentes brilhantes na arte da prestidigitação.
Artigo publicado originalmente na revista Monthly Review.
Notas
[1] Vale a pena ler o livro de Mirowski, More heat than light (“Mais calor que luz”), para uma história da inveja que os economistas marginalistas sentem da Física.
[2] Presumivelmente, é a essa formulação de livro didático que Burgis está se referindo em seu artigo quando diz “o economista e editor da Jacobin, Mike Beggs, observa que os economistas, hoje em dia, pensam em termos de cronogramas de oferta e demanda, em vez de oferta e demanda como sendo forças que operam sobre as mercadorias. Isso faz com o que o argumento do Marx de que algo deve explicar os preços quando essas forças estão em equilíbrio seja muito menos convincente”
Sobre os autores
é economista e cientista da computação, e desenvolveu pesquisas sobre a teoria marxista do valor, teoria econômica socialista, além de outros trabalhos em áreas da informática, como em automatos celulares, máquinas de bancos de dados, padrões de conversão de vídeo e TV 3D. Seus livros mais conhecidos são "Towards a new socialism" (Por um novo socialismo) e "How the world works" (Como o mundo funciona).